Mudamos recentemente para uma casa com um pequeno quintal, algumas plantas e uma árvore. Em um dos seus galhos, a altura dos olhos notamos um ninho de passarinhos que pareciam estar quase prontos para deixar o ninho, já não eram mais tão filhotes. Minha filha de um ano e nove meses adorou. Nesse ponto é importante contar que temos dois gatos. Calma, não adiante suas previsões das cenas seguintes.
Enquanto a mudança acontecia, minha filha era entretida por alguns familiares. Os gatos estavam na casa antiga e viriam somente no final da mudança quando tudo estivesse no lugar para que os deixássemos se acostumar com o novo ambiente. Pra quem não sabe (se é que alguém não sabe disso), gatos são metódicos, muito metódicos. Mania é sinônimo de gato. Qualquer mudança de rotina é motivo para dramas incomensuráveis.
Mudança feita, tudo no lugar. Hora de soltar os gatos e a filha no quintal. Os bichos andaram por tudo, cheirando cada canto e caminhando na ponta dos pés sobre a grama meio abaixadinhos. Como aquelas cenas de vietcongues nos filmes americanos da guerra do Vietnã.
Em 10 minutos, o caos que você previu agora a pouco estava armado. Gatos loucos querendo pegar os passarinhos, família alvoroçada. Os passarinhos apavorados caem do ninho dando pequenos voos de um lado para o outro, ninguém consegue captura-los até que desaparecem nos arbustos. Sim, acontece o pior. A mãe dos passarinhos ficou por mais de uma semana trazendo alimentos e piando para os filhotinhos que já não estavam mais por lá. Minha filha excitadíssima com todas as novidades mal percebe o que aconteceu. Mas nós sim.
E é aqui que começa o tema desse texto: condicionamentos. Sabe aquela história tradicional que se conta que alguém vai cozinhar um pedaço de carne e corta duas pontas pra colocar na panela porque a família faz isso há gerações e quando se pergunta a avó anciã, ela diz que fazia só porque não tinha uma panela grande?
Podemos dizer que o passarinho, os gatos e as pessoas nesse texto tem uma natureza a ser seguida? Segundo a ótica do yoga pelo menos, sim. Um passarinho come coisas de passarinho, faz coisas de passarinho e pia, não late ou mia. Um gato da mesma forma. Não dá pra esperar de um gato muita coisa além de comer, dormir e acordar a casa toda durante as madrugadas como se sua casa acabasse de ser invadida por assaltantes de bancos. Claro que esses condicionamentos não são totalmente limitantes, as vezes vemos vídeos na internet de passarinhos jogando dama, ou dançando Macarena. Outro dia vi um gato andando em uma coleira com seu dono bem calmamente. Ainda desconfio que fosse realmente um gato.
Mas e quanto a nós, humanos? Também vivemos sob fortíssimos condicionamentos. Não fosse assim, não divergiríamos tanto entre nós. Estamos sempre muito certos de nossas convicções e muito frequentemente não notamos que boa parte delas são meros condicionamentos adquiridos por nossa educação e cultura da família e local onde nascemos.
Voltando à história acima, os passarinhos despertaram reações diferentes em cada um de nós. Teve satisfação por parte dos gatos, revolta com os bichanos por familiares e indiferença de outros, como a da Olívia de um ano e nove. A mãe passarinha deve realmente ter experimentado algum tipo de tristeza e frustração que imagino existir no mundo dos passarinhos ao continuar trazendo alimentos aos filhotes, (por mais de uma semana!) que nunca mais encontrou. Um claro condicionamento.
Cada um de nós reagiu de acordo com seus condicionamentos, ou como chamamos no yoga, samskaras. A tristeza, a revolta, a dor, a consternação a indiferença, a compreensão e qualquer outro tipo de sentimento que surgiu nessa situação com os envolvidos ou em você ao lê-la, surgem dos condicionamentos que adquirimos ou vamos construindo ao longo da nossa vida.
Os condicionamentos por si só não são bons ou ruins, são somente condicionamentos. Suponhamos que você seja fumante e decide parar de fumar. Para ajudar no processo, resolve começar a caminhar e praticar meditação. A caminhada e a meditação, ao se tornarem hábitos pela repetição, são também condicionamentos, ou samskaras. Uma boa tradução para a palavra samskara é marca. Hábitos e condicionamentos que criam marcas em nós. Podemos desempenhar ações que nos levem na direção de mais aflição, como fumar ou que gerem mais saúde, como a caminhada e a meditação. Ou seja, alguns samskaras (ou condicionamentos), são mais aflitivos ou geram mais sofrimentos do que outros. Alguns não geram sofrimento imediato mas podem gerar a longo prazo e outros podem não gerar sofrimento.
Em yoga não há intenção em simplesmente nos livrarmos dos condicionamento, queremos é reduzir os condicionamentos limitantes e construir outros que nos levem em direção a uma sensação de maior liberdade. Mas liberdade com relação a quê? O que nos prende?
Condicionamentos e liberdade
Já ouvi diversas vezes pessoas dizendo “eu quero ser livre”, “detesto que me prendam”, “minha esposa não me dá liberdade”, “meus filhos me escravizam”. Pausa. Vamos ver outra coisa antes.
Li essa história não me lembro onde, infelizmente. Um dia o Dalai Lama recebeu uma visita de um monge Tibetano que havia ficado quase trinta anos em poder dos chineses trabalhando em um campo de trabalho forçado. Passou por torturas de diversos tipos. Conversaram por bastante tempo e ao vê-lo tão sereno, mesmo falando de tantas brutalidades, Dalai Lama perguntou a ele do que tinha tido mais medo. Então disse o monge: “por diversas vezes senti medo em odiar meus torturadores pois sabia que assim eu me destruiria”.
O que é que realmente nos limita, impede nossa liberdade?
Se desejo viajar para as praias paradisíacas da Ásia e não consigo por falta de dinheiro, culpo meu emprego que me paga pouco e meu chefe que acabou de trocar de carro ao invés de me dar um aumento. Se tenho uma conta bancária recheada e consigo viajar para onde desejo, me sinto limitado por minha esposa que não me entende ou ainda por meus subordinados preguiçosos. Quem nunca viu aquele discurso que diz que estamos afundados na lama por conta da incapacidade do outro? “O país não vai pra frente por conta do povo preguiçoso, corrupto que não sabe votar”.
Já escrevi outro texto que trata sobre isso de uma forma diferente. Se você ainda não leu, leia aqui. O fato é que nos afligimos, sofremos e sentimos essa sensação de limitação por conta da nossa falta de conhecimento sobre quem somos em profundidade. No exemplo do passarinho e em outros exemplos semelhantes, confundimos a nossa própria identidade com toda a situação que se apresentou. Baseados em nossos condicionamentos passados e como foram criados e continuamos nos identificamos com eles, podemos sofrer ou não a medida em que nos apegamos ou sentimos aversão por conceitos, ideias e sensações dos mais variados tipos.
No exemplo do passarinho, criamos uma expectativa onde achávamos que nossa filha veria os passarinhos crescendo todos os dias e que em algum belo momento, os veríamos saltar do ninho rumo a vida e assim nossa filha poderia ter esse belo contato com o ciclo da vida. De fato ela teve esse contato, mas foi mais no estilo Tarantino e menos Disney. A realidade se apresentou, frustrou nossas expectativas e ficamos chateados.
Como podemos ver isso pela ótica do yoga? Tanto quando os passarinhos morreram quanto quando queremos passar umas semanas em bangalôs na Tailândia e nos frustramos ao não conseguirmos, nos frustramos por nos identificarmos exageradamente com a situação externa. Criamos em nós, internamente uma série de condições dentro de uma história que passa a fazer cada vez mais sentido. E o pior, de uma história onde somos protagonistas! Nos imaginamos naquela situação vivendo algo que criamos a partir de nossa imaginação e ao não termos aquilo realizado, a sensação que temos é como de um ataque a nossa individualidade, à nossa sensação de eu. Aquela história cuidadosamente elaborada para aquele personagem não poderá acontecer, não existirá e somos confrontados por uma realidade diferente daquela que imaginamos. Todos já vivemos isso.
Pela ótima do yoga, pode-se dizer que os condicionamentos que pavimentam os caminhos de nossas ações e decisões enquadram-se em três grupos e afetam o corpo e a mente da seguinte forma:
- Tamas ou sensação de peso, inércia, inação, melancolia, depressão, engano – sentimos dificuldades em tomar decisões, preguiça, torpor. A mente funciona com lentidão, não conseguimos processar ideias e conceitos um pouco mais complexos e temos pouquíssima clareza sobre nossas sensações e sentimentos. Temos uma sensação de limitação e peso no corpo.
- Rajas ou ação, agitação, agressividade, desconforto, sensações dolorosas – é quando nos sentimos mais agitados, a mente processa muitos pensamentos ao mesmo tempo e de forma desconexa, confundimos nossos sentimentos, temos pressa, ansiedade, nossos sentidos se voltam muito para o desejo e satisfação, aumenta o risco de nos machucarmos, não sabemos bem ao certo o que queremos, o corpo parece não encontrar conforto em si mesmo. Temos dificuldades em aceitar pontos de vista diferentes e podemos nos ofender mais facilmente.
- Sattva ou lucidez, clareza, sensação agradável, conforto – é quando sentimos o corpo, o coração e a mente mais leves. Temos uma sensação estável, perene de prazer que não necessariamente se conecta com algo externo a nós. O corpo parece impor menos obstáculos, implicamos menos com aquilo que é divergente de nós, e sentimos maior lucidez para processar informações novas. Nossa sensação de empatia cresce e não nos apegamos tanto a conflitos. O corpo está sempre pronto para a atividade e nos sentimos aberto a novidades.
A esses conceitos o yoga chama de gunas, os três atributos primordiais que formam nossa mente, nosso corpo e tudo o que existe.
Vamos a alguns exemplos para entendermos melhor como esse modelo de compreensão da realidade funciona.
Uma pessoa por volta dos 30 anos vai à praia em um sábado à tarde. Senta-se em sua canga, lê um livro agradável, descansa e ao final do dia contempla um agradável pôr do sol. Em uma tranquilidade leve, ela tem uma experiência de sattva. Volta pra casa se prepara para sair à noite, vai pra uma baladinha top, está animada, faz um esquenta em casa com os amigos e chega no local da festa. Bebe um pouco, dança e nessa agitação, experimenta rajas. Ao final da noite volta pra casa (de Uber) cansada, mal encontra o buraco da fechadura e apaga no sofá da sala e experimenta um tapa de tamas.
Um pai ou mãe tem um dia agitado no trabalho. Relatórios, café, Power Points, café, reuniões, café, um leão por dia, café, metas, café, deadline, chefe, café, café, chefe… Um intenso dia de rajas. Na volta pra casa no trânsito, a agitação passa (depois de anos no trânsito já não se irrita mais), e vem a consternação, o torpor, o cansaço e o desejo de mudar de emprego no ano que vem. Uma hora e meia no trânsito tomado por grande apatia. Ao chegar em casa encontra com a filha de três anos, cheia de vida, energia e novidades. Todo o cansaço e a irritação se vão e a entrega completa toma conta desse pai ou mãe. Eles brincam, contam novidades e aquele momento é vivido em sua plenitude, sem torpor ou agitação, sem cansaço ou irritação, somente a vitalidade do encontro engrandecedor. Uma doce sensação de sattva toma a todos naquele momento.
…
A ideia não é simplesmente um processo de “evolução” do primeiro ao último, de tamas a sattva mas sim a busca por um equilíbrio entre esses três atributos. O equilíbrio também não está em colocarmos os três em um mesmo nível como um gráfico de barras onde os três tem a mesma altura. Precisamos de tamas na vida para descansarmos a mente, quando dormimos, por exemplo. No sono profundo é quando podemos experimentar uma sensação completa de tamas, estamos apagados, desligados. Por outro lado, precisamos de rajas para acordarmos para desempenharmos uma porção de atividades no trabalho e na vida. Mas é sattva que vai nos dar a lucidez e a clareza para tomarmos decisões nos relacionarmos com mais sabedoria e preenchermos com mais vitalidade nossos relacionamentos, nossa vida. Vivemos quase que a maior parte do tempo oscilando entre tamas e rajas, quando tamas aumenta muito, tomamos remédios para depressão, quando rajas aumenta muito, tomamos remédios para ansiedade e não vemos nunca uma alternativa a esse par de opostos. O equilíbrio portanto está em reduzir a predominância de tamas e rajas, e aumentar sattva.
No final das contas, tudo é samskara, tudo é condicionamento, temos só que aos poucos, com calma, cuidado e muito respeito por si mesmo, construir novos samskaras que nos levem a perceber nossa energia e sensação de vida interna e profunda na mesma medida em que vamos aos poucos nos desvencilhando dos condicionamentos antigos que embotam ou turvam nossa percepção do mundo e de si mesmo.
Nos exemplos acima, o ideal seria encontramos formas de fazer com que todos os momentos do dia sejam tocados por sattva, apesar do trabalho intenso, das horas no trânsito e das baladas noturnas.
Esses conceitos são fundamentais e estruturantes no yoga e todas as práticas devem apontar na direção de redução de samskaras tamas e rajas para um florescer cada vez maior de samskaras sattva. Através das práticas das posturas (os ásanas) os samskaras tamas e rajas vão sendo reduzidos e através das práticas de respiração (pranayama) e meditação (dhyana), os samskaras sattva vai sendo construídos.
Porém, o processo não se dá somente dessa forma. Essa mudança de samskaras podem acontecer, até certo ponto, através da mudança intencional de rotinas, de estudos e da conversa com o professor, por exemplo. E isso só é possível pelo grande respeito às individualidades, à história de cada um e ao grande pacote de samskaras que cada um de nós carrega. O yoga vai lentamente nos conduzindo de uma compreensão errônea e confusa sobre nós mesmos, para maior uma liberdade em conhecer-se mais profundamente.
A liberdade portanto é nos distanciarmos de samkaras tamas que nos aprisionam em nós mesmos, samkaras rajas que nos agitam demais e perturbam nossas percepções em direção a samskaras sattva que permitem maior lucidez sobre quem somos.
Nos sentimos presos, limitados, por não conhecermos com clareza como esses samskaras operam e nos dominam nos levando a uma vida alheia a nós mesmos atribuindo ao outro e a fatores externos nosso sofrimento que surge a partir de nossa própria dificuldade de percepção sobre nós.
A liberdade mais profunda não vem da liberdade física, religiosa, política, artística e etc. É claro que precisamos experimentar um certo tipo de liberdade externa, mas o que causa a real sensação de liberdade é libertar-se dos próprios condicionamentos da tirania da mente. É conhecer do que somos formados para que saibamos com clareza do que realmente precisamos do mundo.
O grande sábio Patanjali, diz em um trecho do yogasutra, no verso 2.28:
A prática e a reflexão sobre os diferentes aspectos do yoga gradualmente reduzem os obstáculos como a compreensão errônea. Então, a chama da percepção brilha e a distinção entre aquele que percebe e aquilo que é percebido torna-se mais e mais evidente. Agora, tudo pode ser compreendido sem erro.
Acho isso fantástico e creio que acharei pelo resto da vida.
Quer se juntar a essa jornada incrível? Seja bem-vindo!
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Obs.: Para aqueles mais conectados com o estudo do yoga sutra, tomei a liberdade de dizer que os termos tamas, rajas e sattva aparecem no yoga sutra. Bom, de fato uso esse palavras do samkhya, no yoga sutra os mesmos conceitos são tratados como prakasha (luminosidade, esplendor), kriya (ação, atividade, movimento) e sthiti (imobilidade, inercia).
por Ricardo Prates
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